Reflexões sobre as escolhas intermediadas por um jogo

A Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) oferece diversos cursos de graduação, pós-graduação e projetos de extensão. Os alunos, ao desenvolverem seus trabalhos de pesquisa, saem a campo a fim de avaliar seus estudos. Uma destas pesquisas está pautada na criação de uma ferramenta que permite ampliar o número de pessoas capazes de criarem e utilizarem jogos digitais.

Neste contexto é interessante saber que jogos digitais são sistemas de software interativos que podem ser utilizados para outras atividades além de lazer, como, por exemplo, ferramenta de educação. No entanto, jogos requerem do usuário habilidades sensoriais, cognitivas e motoras. Essas habilidades de interação são comum a usuários médios, que pertencem ao desvio padrão de uma distribuição normal de usuários. Entende-se por usuários médios típicos, no contexto de jogos digitais, uma pessoa alfabetizada, sem deficiências visuais, auditivas, mentais ou motoras. Sendo assim, pessoas que se afastam das habilidades tomadas como modelo podem ter dificuldades para usarem o artefato criado; jogos podem, assim, tornarem-se inviáveis para pessoas que não dispõem de capacidades de interação necessárias para jogar um jogo.

Uma alternativa mais inclusiva é defendida pelos conceitos do chamado Design Universal (ou Design para Todos). Esses conceitos partem da premissa de que os produtos devem ser desenvolvidos para serem acessíveis à maior extensão possível de pessoas, respeitando a diversidade humana e promovendo a inclusão. No contexto de jogos digitais, Universally Accessible Games (UA-Games), ou Jogos Universalmente Acessíveis, descreve abordagens que se preocupam em incluir o maior número de pessoas, independentemente de suas limitações. São exemplos: UA-Chess, Access Invaders, Game Over! e Terrestrial Invaders que atuam como provas de conceito e como estudos de caso para a abordagem mencionada.

Inspirado por essas ideias, o doutorando Franco Garcia do Programa de Pós-graduação em Ciência da Computação (PPG-CC) da UFSCar, estuda a criação de jogos digitais por e para todos, buscando contribuir com a inclusão social e digital de mais pessoas. No que diz respeito a criação de jogos por todos, busca-se expandir o número de possíveis pessoas que possam criar jogos digitais, respeitando suas necessidades e capacidades particulares de interação. Por outro lado, a criação de jogos para todos procura permitir que os jogos digitais criados possam ser acessíveis a públicos com diferentes necessidades e capacidades de interação.

Para apoiar o objetivo de sua pesquisa de doutorado, Garcia cria uma ferramenta que visa permitir que novos públicos possam criar seus jogos. Atualmente, essa ferramenta permite a criação de jogos narrativos, como dos gêneros Aventura e Visual Novel. Esse gênero é focado no enredo, ou seja, em certos trechos, o jogador deve escolher dentre as opções disponíveis para prosseguir com a história, escolha essa que gera consequência no desfecho da narrativa. Para apoiar pessoas com baixo letramento, a ferramenta explora metáforas de criação visual e uso de áudio. Já para pessoas com deficiência auditiva, a ferramenta permite a inclusão de versão textual e vídeo em Libras.

O uso desta ferramenta está sendo avaliado em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Esses centros são unidades que prestam serviços de saúde de caráter aberto e comunitário, disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para tratarem pacientes com sofrimento ou transtornos mentais, associados ou não ao uso de substâncias psicoativas. O CAPS é constituído por uma equipe multiprofissional que atua sob a ótica interdisciplinar, cujo o objetivo é oferecer um atendimento de qualidade para os pacientes, seja em situações de crise ou nos processos de reabilitação psicossocial, com o intuito de estimular a integração do paciente com sua família e a comunidade. Os pacientes são maiores de 18 anos e fazem uso problemático de substâncias psicoativas.

No CAPS, pessoas com diferentes níveis de escolaridade e experiência com uso de computadores e outras Tecnologias de Informação e Comunicação, como  smartphones, têm compartilhado suas experiências criando jogos digitais. A cada quinze dias, a equipe de Garcia, composta por pesquisadores de Computação e Enfermagem da UFSCar, vai até o CAPS para co-criar jogos com os pacientes. A proposta é que eles consigam criar seus próprios jogos, mesmo não tendo nenhuma experiência prévia. Tanto o grupo de apoio da ferramenta, quanto o grupo de especialista do CAPS auxiliam o paciente — cada um em seu ramo de atividade.

Uma psicóloga participante do projeto relatou que o CAPS, em conjunto com o projeto da UFSCar, tem muito a oferecer aos pacientes, a partir de um do ponto de vista terapêutico. Segundo a psicóloga, a atividade tem colaborado no contato do paciente com a tecnologia, no desenvolvimento de habilidades cognitivas, na criatividade do estímulo para a criação de um jogo, na identificação com a atividade e a possibilidade de refletir sobre situações vivenciadas ou não, no aprendizado de novos comportamentos para lidar com situações de conflitos no cotidiano, no desenvolvimento de autonomia no momento da criação e, também, a responsabilidade por suas escolhas e consequências.

Ainda, segundo a psicóloga, a atividade diferencia-se das demais oferecidas pelo CAPS por possibilitar o contato com a tecnologia e profissionais de outras áreas que não sejam a saúde, além de contribuir com o processo de reflexão para possíveis mudanças em relação ao cuidado da saúde e comportamento do paciente.

Os pacientes, por sua vez, relataram que, em relação a terapia, a atividade tem-lhes ajudado a escolher caminhos e consequências decorrentes da escolha de cada um deles. A atividade também contribuiu para que refletissem sobre as decisões das próprias vidas e  que se divertissem, se distraissem e ocupassem a mente. Além disso, os pacientes consideraram que a ferramenta demonstra experiências de suas vidas e observam a necessidade de aprimorar as expressões faciais e movimentos corporais do jogo.

Garcia relata que a experiência no CAPS demonstra como pessoas com diferentes experiências e necessidades de interação podem criar jogos digitais, como forma de auto-expressão e compartilhamento de experiências. Relata ainda, que, nenhum participante tinha criado jogos digitais anteriormente. Além disso, alguns participantes usaram computadores pela primeira vez durante as atividades e alguns nunca foram à escola. Entretanto, embora essas fossem barreiras potenciais de acessibilidade, nenhuma delas impediu a criação de cada participante. Pelo contrário: explorando as habilidades de cada um, todos os participantes conseguiram criar suas histórias digitais e compartilhá-las para o uso de seus colegas. Colaborações com áudio, por exemplo, permitiram que participantes com dificuldades em leitura entendessem as histórias de seus colegas, a da mesma forma, narrações em áudio e desenhos auxiliaram nas atividades de criação por participantes com dificuldades de escrita.

Em especial, pôde-se observar satisfação e orgulho por parte de alguns participantes quando seus colegas – e profissionais do CAPS – interagiram com seus jogos. Da desconfiança e da incerteza inicial, resultaram-se sentimentos como “eu posso, eu consigo fazer” e de que é possível fazer escolhas melhores para se resolver uma determinada situação.

A professora Vânia Neris, orientadora do projeto de doutorado do Franco, relata que esta experiência com a instituição de cuidados em saúde mental tem colaborado para a observação de que um editor com solução adequada de design, pautado no modelo de colaboração e na arquitetura de software formalizados, pode potencializar a ação terapêutica, trazendo a reflexão para o momento da criação dos jogos. Além disso, comentou que há indícios de que a solução criada apoiasse o empoderamento e o resgate da autoestima.

Neris também declarou que além do projeto cooperar para a terapia dos pacientes, também favorece a comunidade de pesquisa e o estado da arte (o que se tem de mais atual em relação a pesquisa). Segundo a professora, a principal contribuição desse trabalho para o estado da arte é fornecer meios para que pessoas possam criar seus próprios jogos digitais e também participar de jogos criados por outros, click here to view. Para isso, foi investigado e formalizado um modelo de colaboração que inclui criadores, supervisores, melhoradores e jogadores, uma arquitetura de software distribuída e desenvolvido um editor / tocador de jogos. Espera-se que, além dos aspectos técnicos em computação que estão sendo trabalhados, o potencial terapêutico que vem sendo observado possa ser ainda melhor investigado.

Neris conclui que, nessa primeira fase do trabalho em campo, pôde-se verificar a aplicabilidade das soluções criadas. Ela comentou sobre o interesse de que a parceria continue, para se investigar como apoiar, via um agente inteligente, a criação desses jogos com outros recursos para melhoria da saúde mental conforme embasamento da área da saúde.

Levando-se em conta o que foi observado, é imprescindível que todos se conscientizem de que a Universidade não cria artefatos apenas para si própria, mas que existem projetos nos quais sua contribuição beneficia também a comunidade em geral. Além disso, para uma sociedade mais justa, deve-se beneficiar todos, sem distinções – inclusive no contexto de jogos digitais.

 

Paciente pensando em qual opção escolher. É neste momento que se pode mudar o desfecho da narrativa do jogo.

Paciente jogando com o auxílio da professora Vânia.

 

Game Play dos pacientes

 

No dia 14 de novembro de 2018, a equipe de Garcia foi até o Centro de Atenção Psicossocial para avaliar a ferramenta criada com a participação dos pacientes. O vídeo é uma gravação da tela do jogador que foi registrada para fim de análises da pesquisa.

Nesse caso, em específico, a pessoa que jogou tomou boas decisões sempre que  questionada. Para uma sessão de tratamento, isso poderia sugerir que os procedimentos adotados seriam efetivos.

Neste primeiro caso, jogos poderiam ser instrumentos de avaliação, bem como, usados para aprendizado, para  fornecer um ambiente seguro para exploração de alternativas.

Um ambiente auto-contido, seguro, e controlado, como um jogo virtual, permite a uma pessoa escolher algumas dentre as opções disponíveis para simular diferentes cenários e observar os resultados decorrentes. Em potencial, ela poderia analisar como, em uma determinada situação, diferentes escolham poderiam alterar o rumo de sua vida – seja para o bem, seja para o mal. No caso de um jogo, os resultados de escolhas ruins afetariam negativamente apenas a personagem controlada, não a pessoa jogando. Assim, ao invés de comprometer a própria saúde, ela poderia refletir sobre como uma escolha ruim afetaria sua vida. O mesmo argumento pode ser feito para escolhas boas.

Os parâmetros fornecidos explicitam possíveis resultados de uma escolha. No caso do CAPS, as profissionais definiram saúde, relacionamentos e trabalho como parâmetros a serem alterados por cada decisão. Os valores são definidos pelos criadores durante a criação do jogo, e avaliados por profissionais da saúde. Para o jogador, a alteração de valores nos parâmetros serve tanto como uma forma de analisar se sua escolha foi boa ou ruim, quanto mensurar, ao longo de diversas, seu progresso. Para o criador, a definição de valores para uma escolha promove um estímulo à realização de juízos críticos acerca de como ela afeta cada um dos parâmetros escolhidos. Além disso, a definição fornece uma oportunidade para o criador compartilhar seu conhecimento de vida com seus jogadores – por exemplo, evitar que pessoas repitam seus erros e que sigam seus bons exemplos.

Referência Bibliográfica

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