Cidades: de pessoas para pessoas

Nas nossas cidades, (…) convivem vários interesses conflitantes e, para cada um deles, a cidade assume um significado diferente.”

Como afirma o sociólogo, economista e professor da PUC SP Pedro Jacobi neste trecho de um de seus artigos, a palavra cidade pode sugerir vários significados. As vezes formalmente, por concepções urbanísticas, outras informalmente, por diversas metonímias. Mas sempre junto de termos que sugerem pessoas, população ou comunidades.

Definida também por “áreas urbanizadas”, as cidades possuem certamente um significado mais profundo, se contado seu valor para indivíduos. Pode ser para as pessoas o lugar onde se formaram seus principais laços ou local de diversas lembranças. A cidade pode ser para uma pessoa parte significativa do que se faz, e, por vezes, do que se é. Não são necessários olhos críticos para perceber que na formação das cidades estão escritas informações de sua história e de seu povo. A forma física da cidade provém dos valores partilhados daqueles que a formam, daquilo que eles gostam. E a cidade fica como registro da história, escolhas e desafios dos sujeitos sociais.

Essa ideia vem junto do conceito de patrimônio, que foi primeiro experimentado durante a Revolução Industrial no século 19, quando começaram a admitir que monumentos possuíam, integrados a eles, certos valores culturais, ligando o termo a uma noção de nacionalidade. No entanto, essa compreensão de patrimônio ainda era demasiada restrita. No Brasil, por exemplo, limitava-se à palácios, casas grandes e igrejas antigas, e sugeria que a cultura indígena e africana não fazia parte da identificação e história do país e de seu povo. Era uma noção desmedidamente escassa e alheia.

Atualmente, no sentido legal da palavra, patrimônio pode identificar aquilo que é herdado, sendo objetos de valor monetário como joias e propriedades, ou valor emocional como fotos e livros religiosos. Culturalmente, ainda é possível dizer que patrimônio é aquilo que se passa de geração a geração, o que as pessoas decidem que vale a pena preservar e manter, podendo ser valores, histórias, costumes ou habilidades, como a receita familiar de nhoque.

O dr. Benedito Tadeu de Oliveira deu uma breve definição de patrimônio imaterial em um encontro da ACIEPE “Os diferentes olhares para a cidadania, cultura e cidade intermediados pela web: produção colaborativa de conteúdo multimídia visando engajamento e participação em um observatório”.

 

 

 

Esta dissociação do sentido de patrimônio a grandes monumentos, deve-se muito aos processos de urbanização e globalização. Patrimônio pode hoje, ser tudo ou estar em qualquer lugar, se pessoas se apropriarem ou se identificarem com algo. Reforçando um aspecto colaborativo e participativo da população, patrimônios passaram a ser reconhecido como algo verdadeiramente de posse da população. São as pessoas que sabem o que elas gostam, o que elas querem manter e mostrar. Esse sentimento de identidade promove o respeito à diversidade cultural e contribui à criatividade humana.

Não podemos deixar de mencionar que a cidade é um produto público como um bem comum…”

Como lembra Francisca Ward em um texto via Plataforma Urbana, a cidade é construída coletivamente por aqueles que nela vivem. E por isso suas características dizem respeito aos costumes e valores de sua população, suas formas de expressão e modos de fazer. O interesse público está presente em cada esquina, em cada objeto, em cada forma, em tudo que tenha valor, seja histórico, cultural, paisagístico, artístico, científico, ecológico, arquitetônico, tudo. Em geral, a cidade identifica seu povo. Porém é um relacionamento de via de mão dupla, pois a cidade também diz muito das vidas das pessoas. Locais de encontro explicitam a maneira como as pessoas se relacionam. O tráfego mostra como elas se locomovem. Os espaços mostram como elas veem sua cidade. As escolhas no planejamento de uma cidade influenciam diretamente no seu modo de viver, qualidade de vida e saúde física e mental. Por exemplo, morar perto de um parque diminui suas chances de infarto miocárdio, enquanto a exposição à poluição aumenta. E viver em locais com diferentes representações artísticas pode influenciar na sua saúde mental.

No entanto, nos últimos anos houve uma guinada em direção à valorização da forma, principalmente com o Modernismo, os planejamentos de cidades passaram a ter uma perspectiva muito mais alheia.

“Por décadas, a dimensão humana tem sido um tópico do planejamento urbano esquecido e tratado a esmo…”

Jan Gehl, arquiteto e urbanista dinamarquês, introduz em seu livro “Cidade para pessoas”, o fato de que novas ideologias urbanistas vêm priorizando a forma à vida, quando seria necessário valorizar a interação da forma e vida. Deram preferência a questões como o aumento do trafego na cidade, e idealizaram a segregação de espaços de diferentes usos, sem perceber as consequências à experiência humana.  Ele cita ainda a cidade de Brasília como um exemplo de planejamento onde valoriza-se a forma. Brasília tem uma perspectiva aérea muito agradável, mas para quem convive à altura do chão, o formato de avião e os espaços entre as edificações não parecem tão simpáticos. Essas ideologias deram baixa prioridade ao papel do espaço urbano para prazer daqueles que o usam, e ainda maltratam pedestres com espaços cada vez mais limitados, ruídos, obstáculos, poluição e outros empecilhos.

“Por que vocês arquitetos não se interessam por pessoas?”

A psicóloga com quem Jan Gehl se casou, questionou o motivo de arquitetos não estudarem pessoas em seus cursos. Como no caso de Brasília, o objetivo e expectativas do planejamento urbano parecem querer seguir um caminho indiferente às pessoas que lá habitam. Mas não é isso que acontece. A forma de construir tem grande influência na qualidade de vida das pessoas.  E isso deve ser repensado em todas cidades. É necessário repensar a humanização das cidades, pois, como pensa Jan Gehl, “Boa arquitetura é interação entre forma e vida. E somente se a interação funciona bem, (…) trata-se de boa arquitetura”.

Entretanto, é aparente que não se trata de um problema fácil e de simples solução. Fica ainda mais visível em tempos de eleições quando, como diz o professor e economista Pedro Jacobi, as pessoas são bombardeadas por promessas de candidatos a prefeito, e por diferentes propostas, de diferentes partidos, sobre como as cidades deveriam ser governadas. É evidente o desacordo e tensão nessas questões, e a necessidade de imaginação e novas alternativas capazes de transformar a realidade atual.

           “Há um mito nostálgico de que bastaria termos dinheiro suficiente (…) para erradicar todos os nossos cortiços em dez anos, (…) fixar a classe média itinerante e o capital circulante de seus impostos e talvez até solucionar o problema do trânsito”

Diz Jane Jacobs, escritora e ativista política, em seu livro “Morte e vida de grandes cidades” sobre a desilusão quanto as soluções para melhor qualidade de vida. Quando se pensa em cidades reconhecidas pela proporção de ótima qualidade de vida como Copenhague, na Dinamarca, restam dúvidas sobre a viabilidade de projetos parecidos com os realizados lá, em cidades como São Paulo, que possuem uma realidade muito diferente. Parece que essas cidades foram predestinadas a melhores relações de urbanismo e qualidade de vida, enquanto outras são vítimas de acontecimentos históricos e causas naturais, sendo que, para compensar essa diferença, seria necessário poder aquisitivo maior do que o atual.

         “A gente acha que só tem uma única resposta certa para uma questão, mas a verdade é que existem um monte de respostas invisíveis.”

Natália Garcia, jornalista especializada em planejamento urbano, apresenta em um programa de eventos locais, o Tedx, o que ela chama de “maldição da única resposta certa”, e soma ao propor tratar, o que chamamos de problemas, como características de uma cidade. Conforme aconteceu na cidade de Portland, nos Estados Unidos, onde se olhava o fato de haver chuvas abundantes como um problema, já que a única saída à pavimentação das ruas eram asfaltos permeáveis. No entanto, através de pesquisas locais, muito se desenvolveu no sentido de calçadas e concretos permeáveis que pudessem substituir os atuais. Assim os habitantes da cidade puderam olhar os números anormais da quantidade de precipitação de água como uma característica da cidade, e isso trouxe uma melhora na qualidade de vida, além de viabilizar o uso recreativo de rios que antes recebiam muitos detritos dos asfaltos impermeáveis.

Para feitos desse gênero, Natália enfatiza a necessidade de diagnósticos precisos, não apenas dos problemas, mas também dos potenciais da cidade. É necessário que nos planejamentos haja a conexão daqueles que têm conhecimento sobre a situação, com aqueles que possuem recursos para tal, e com quem mais tiver interesse em realizar. É fundamental que antes que se decida, se ouça. Ouvir principalmente aqueles que necessitam de uma solução para seus problemas, e têm a legitimação de seus direitos em questão.

Jane Jacobs sugere que o surgimento de problemas anda junto de inovações, como oportunidades.  “Quanto mais temos trânsito público, mais espaço haverá para um dos melhores tipos, bicicletas!”. Essa relação é algo natural. Desde de que se dão por humanos, as pessoas estão constantemente resolvendo problemas renovando seu jeito de viver, e se ajeitando as mudanças. Em Copenhague, as pessoas passaram antes por dificuldades com as crises de energia na década de 70, para que depois iniciassem um movimento gradual dos habitantes reivindicando melhor infraestrutura para bicicletas, e sistema de mobilidade. De certa forma, eles reivindicaram sua cidade. Em Makoko, na Nigéria, há problemas com inundações, e por isso foram criadas escolas flutuantes com materiais baratos e disponíveis. Em Manila, transformaram garrafas d’água em lâmpadas. Em Karachi, uma mulher transformou plásticos descartados em tijolos. Essas soluções constroem não só casas e ciclovias, mas também a identidade da cidade.

Esses movimentos explicitam um sentimento de propriedade, e trazem a humanização das cidades. Eles demonstram que as cidades não são as construções, mas as pessoas.  Em muitos casos, foram repensados arquitetos, designers e todos participantes como cientistas sociais que queriam sua cidade de volta. Pois, como no texto de Francisca Ward, a cidade é um bem comum, e esses “processos participativos ensinam sobre os novos valores e novas formas de entender e apreciar a cidade, e, portanto, novas formas de atacar os problemas das comunidades urbanas.” Para que as pessoas possam, assim, passar o bastão para a próxima geração para que essa reconheça a história no patrimônio deixado, entenda, ela mesma, seus valores e formas de viver, e desafie suas novas dificuldades, moldando sua identidade.

 Referências:

  • https://www.archdaily.com.br/br/01-81885/participacao-do-cidadao-uma-utopia-para-fazer-cidade
  • https://www.youtube.com/watch?v=xOOWk5yCMMs
  • http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/234
  • https://www.youtube.com/watch?v=GNaovn4ta7M&t=195s
  • http://umbrasil.com/videos/arquitetura-era-feita-priorizando-predios-nao-as-pessoas-diz-jan-gehl/
  • https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3843818/course/section/923498/JACOBS-Jane-1961-Morte-e-Vida-de-Grandes-Cidades%20%281%29.pdf
  • http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451986000100004
  • https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/08/18/Como-se-constitui-e-quem-dita-o-patrim%C3%B4nio-cultural-de-uma-cidade
novembro 23, 2018

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